top of page

Adição ao jogo: uma substituição do brincar?

  • Dr. Marco Mendes
  • 16 de jul. de 2018
  • 4 min de leitura

Videojogos, jogos de tabuleiro, jogos a dinheiro. Quem nunca jogou um destes? Existem diversos benefícios que se pode retirar desta atividade – educacionais (Griffiths, 2002), sociais (Cole & Griffiths, 2007) e/ou terapêuticos (Griffiths, 2005a). Tomando a própria origem etimológica da palavra, jogo é um termo do latim, “jocus”, que significa brincadeira ou divertimento, pelo que seria natural pensar apenas nos aspetos positivos desta forma de entretenimento. Existem, contudo, evidências de que o excesso de utilização dos jogos, sobretudo os eletrónicos, pode tornar-se aditivo (Griffiths, 2000, 2008).

Em janeiro deste ano, a adição ao jogo (“gaming addiction”) foi considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) uma perturbação mental. Segundo a OMS (2018), esta perturbação consiste num padrão de comportamento de jogo caraterizado por uma intensa dificuldade de controlo sobre a vontade de jogar (frequência, intensidade, duração), por uma crescente priorização do jogar sobre outras atividades diárias e interesses, e pela continuação ou aumento deste comportamento mesmo perante a ocorrência de consequências negativas. Assim, para estabelecer o diagnóstico desta perturbação definiu-se que a severidade deste padrão comportamental deveria resultar em danos significativos nas áreas pessoal, familiar, social, educacional, ou outras, por pelo menos 12 meses. É também necessário assinalar que, atualmente, a noção de adição patológica ao jogo tem vindo a ser entendida como um fenómeno cuja explicação pode ser análoga à dependência de uma substância psicoativa, da Internet, de comportamentos sexuais, entre outros. Assim, as adições podem ser entendidas como sintoma de uma perturbação ou patologia com origem nalguma fase do desenvolvimento humano.

Pensemos nesta patologia como uma substituição do brincar. Winnicott (1975) desenvolveu processos terapêuticos com crianças separadas das suas famílias, durante o período da Segunda Guerra Mundial, e constatou a importância do brincar na construção da identidade pessoal. Para Winnicott (1975), brincar seria uma atividade infantil, mas que também faz parte do mundo adulto. Enquanto para a criança constituiria uma linguagem, uma forma de se expressar (as suas emoções, desejos, competências, dificuldades) e comunicar a sua realidade interior – um espaço entre o real e a fantasia – para o adulto seria uma forma de autodescoberta e exploração como um todo. Fará o jogo compulsivo parte do real ou da fantasia?

Voltemos então à etimologia da palavra “jogo”. Se jogar está associado ao divertimento, individual e/ou em grupo, porque haverá necessidade de sensibilizar a comunidade para o seu uso compulsivo? Para responder a esta questão, Griffiths (2005b) diz que a atividade excessiva e a atividade aditiva são duas coisas muito diferentes: enquanto a primeira adiciona algo à vida, a segunda retira (Griffiths, 2005b). Há como que uma certa perversão do verdadeiro fundamento do jogar nestas situações e o brincar esgota-se. E sendo o brincar uma forma de expressão transversal a qualquer idade, como referiu Winnicott, algo se perde com esta compulsão.

Por vezes, o preço da proteção que o jogo oferece, como uma capa perante o mundo real, é a incapacidade de desenvolver resiliência e adoecer psicologicamente. Uma perspetiva mais recente aponta para uma relação entre a impulsividade e a adição ao jogo, mostrando que esta perturbação pode ser entendida como uma dificuldade no controlo de impulsos (Irles & Gomis, 2015). Esta mesma investigação salienta a impulsividade como um fator desencadeador desta adição e como um marcador terapêutico. Jogar torna-se, neste caso, uma atividade não apenas de prazer e descarga, mas também uma forma de escapar a algo doloroso na vida destes indivíduos ou de satisfazer as suas necessidades psicológicas básicas. Como em qualquer patologia, este torna-se o “único” caminho disponível e o “melhor” modo que encontram para lidarem com as suas angústias. E acontece tanto com crianças, como com adultos, ainda que a maior prevalência seja na adolescência. Na idade adulta, por exemplo, a adição ao jogo pode esconder um evitamento de ter que lidar com o ambiente familiar; já nas crianças, muitas referem recorrer aos videojogos por ser a única atividade onde se sentem livres (Olson, 2010).

Quem nunca ouviu os mais velhos dizerem “no meu tempo não havia as coisas que há agora, brincávamos na rua com o que tínhamos”? Vivemos numa época em que é raro as crianças serem permitidas a brincar livremente no exterior, pelo que o mundo virtual é, para muitos, a via mais acessível à liberdade e à exploração. Fica a questão: se fosse dada uma maior autonomia e espaço para brincar às crianças e adolescentes no mundo real, será que muitos deles não passariam menos tempo a jogar? E no caso dos adultos, o que estará em falta que precisa de ser compensado pelo jogo compulsivo?


Referências bibliográficas:

Cole, H., & Griffiths, M. D. (2007). Social interactions in massively multiplayer online role-playing gamers. Cyberpsychology & Behavior, 10(1), 575-583. doi:10.1089/cpb.2007.9988

Griffiths, M. D. (2000). Does internet and computer “addiction” exist? Some case study evidence. Cyberpsychology & Behavior, 3(1), 211-218. doi:10.1089/109493100316067.

Griffiths, M. D. (2002). The educational benefits of videogames. Education and Health, 20(1), 47-51.

Griffiths, M. D. (2005a). Video games and health. British Medical Journal, 331, 122-123. doi:10.1136/bmj.331.7509.122

Griffiths, M. D. (2005b). Online therapy for addictive behaviors. Cyberpsychology & Behavior, 8, 555-561. doi:10.1089/cpb.2005.8.555

Griffiths, M. D. (2008). Internet and vídeo-game addiction. In C. Essau (Ed.), Adolescent addiction: Epidemiology, assessment and treatment (pp. 231-267). San Diego: Elsevier.

Irles, D. L., & Gomis, R. M. (2015). Impulsividad y adicción a los videojuegos. Health and Addictions, 16(1), 33-40.

Olson, C. K. (2010). Children's motivation for video game play in the context of normal development. Review of General Psychology, 14, 180-187.

Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.

World Health Organization (2018, March 14). Gaming disorder. Retirado a 8 de julho de 2018, de http://www.who.int/features/qa/gaming-disorder/en/

Comentarios


  • Facebook
  • Black Instagram Icon

©2021 Cruza|Mentes. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por Marco Mendes.

bottom of page